V04C04 - CANTOR, A LAMENTÁVEL PRIMEIRA BESTA - PARTE 06

Parte 06 - Antes que este mundo termine – C

No meio da sala ampla e não decorada, havia um pilar de cristal levemente brilhante. Dentro do pilar havia inúmeros rostos, cada um com sua própria expressão: lamentação, alegria, tristeza, surpresa, tranquilidade, perplexidade, raiva, medo. Mas enquanto mostravam diferentes emoções, suas bocas cantavam em harmonia. Finalmente, a cerca de metade do pilar, sobressaia uma estátua de cristal na forma da metade superior do corpo de uma jovem, quase como uma figura de proa colocada na proa de um navio.

[... Cantor, a Lamentável 1ª Besta...?]. Nephren pronunciou seu nome.

Willem tinha ouvido falar dela antes. Pouco se sabia sobre ela, apesar da passarem mais de 500 anos desde sua aparição inicial. Ninguém sabia exatamente quanta ameaça ela representava. A misteriosa 1ª Besta. O primeiro alguém, um ex-humano, que se transformou em uma Besta.

Willem deu um passo na direção dela. Dor intensa, como se estivesse se dividindo ao meio, lançada por todo o corpo. Na verdade, em alguns lugares, sua pele realmente começou a se separar. Ele relembrou o seu estado físico miserável antes de ser preso neste sonho.

Foi um sonho feliz, mas esse é o fim.


No mundo real também, ela provavelmente se transformou em uma Besta naquela sala, não voltou ao orfanato. Isso explicou por que ela desapareceu de sua cama.

[... Se afaste, Ren. Se você chegar perto, seu Venenum ficará berserk e você vai morrer], disse ele, então deu um passo mais perto.

Algum órgão ou outra parte dentro dele entrou em colapso. Ele forçou a porção de sangue tentando sair de sua boca, de volta para o estômago. Uma única gota escarlate saiu do canto de seus lábios.

Estou bem. Não, não estou bem, mas, no mínimo, ainda posso andar. Ainda posso me aproximar.


Willem deveria ter percebido antes. Sem dúvida, ele teria notado se ele tivesse pensado apenas um pouquinho. O tempo todo, desde o seu despertar neste mundo até o presente, nunca mencionou uma palavra sobre sua promessa. Ela nunca disse 'bem-vindo ao lar' a ele, nem mesmo uma vez.

[Ei, Almaria].

O chamado de Willem não recebeu resposta. Ele deu outro passo em frente. Fissuras surgiram em cada osso de seu corpo. Ainda assim, usando Lapidem Sybilus como uma bengala, ele conseguiu sustentar o esqueleto que colapsava.

[Nenhum de nós jamais mencionou o bolo de manteiga].

Willem nunca trouxe isso à tona porque sabia que esse mundo era falso. Ele sabia que ele não havia voltado para casa, ele estava simplesmente preso. Esse pensamento impediu que ele nunca falasse sobre sua promessa.

E quanto a Almaria? O retorno de Willem deveria ter parecido genuíno para ela, que não sabia nada sobre suas circunstâncias externas. Deve ter parecido que Willem manteve a sua promessa, ainda que ela nunca dissesse nada sobre isso.

Apenas uma explicação poderia resolver essa contradição. Talvez nunca estivesse plenamente consciente disso, mas inconscientemente, ela percebeu: Almaria Duffner ainda não havia dado boas vindas ao ‘pai’ em casa.

… Pai…

A menina de cristal chamou-o com uma voz sem voz. No entanto, Willem podia ouvir alto e claro.

[Nossa, quanto tempo você planeja esperar?]. Um sorriso amargo espalhou pelo seu rosto. [Você se tornou uma Besta antes de qualquer outra pessoa, então você arrastou milhares de pessoas para esse sonho, preservando Gomag como estava bem antes do fim dentro de você? Por 500 anos, você carregou essa ilusão, apreciou e esperou, nunca desistindo?].

Outro passo adiante. Outra parte dele quebrou. Ele não podia dizer onde mais. A dor abrasadora já envolveu cada centímetro de seu corpo.

[Você esperou todo esse tempo... Na esperança de que eu um dia tropeçasse neste mundo?].

Tal desejo irrealista nunca deveria se tornar realidade. Mesmo após milhares de anos, essa esperança nunca deveria ter dado um passo para a realização. No entanto, ela segurou o tempo todo e cantou sozinha. Em seu jardim em miniatura semeou as sementes de 3 mil sonhos, ela simplesmente cantou e cantou, como uma caixa de música quebrada.

[Eu realmente... Sinto muito, Almaria].

Mais um passo. Willem agora estava a seu alcance.

Ele só tinha que dizer ‘Estou de volta’, e seu desejo se tornaria realidade. A promessa de voltar para casa seria cumprida neste jardim em miniatura. No próximo aniversário, ela cozinharia o melhor bolo de manteiga de todos. Ela o faria comer até que ele chorasse de azia. Com apenas duas palavras, ele conseguiu perceber aquela ilusão feliz.

Willem ergueu a mão direita, que agarrou o punho de Lapidem Sybilus.

[Iniciar manutenção!!].

As linhas de feitiços que uniam o Carillon se afrouxaram, e os 35 talismãs que constituíam a Lapidem Sybilus explodiram, espalharam-se sobre os arredores de Willem. Com a mão esquerda, ele pegou o pingente pendurado no peito, o talismã de idioma único, e arrancou sua corrente. Ele nunca conseguiu removê-lo naquele mundo dos sonhos, mas agora pousou perfeitamente na palma da mão, reluzindo brilhantemente. Então, ele empurrou-o para a lâmina, como a 36ª parte de Lapidem.

Dentro de um único Carillon, o poder de muitos talismãs se misturava e interferia um ao outro de maneiras complexas para produzir o fenômeno resultante. Se esse delicado equilíbrio mudasse tão ligeiramente, todo o sistema entraria em colapso. Assim, a manutenção geralmente era deixada para os engenheiros altamente treinados e qualificados em oficinas com o equipamento adequado.

O circuito da espinha de Lapidem Sybilus de repente se rompeu, cortando quase a metade das linhas de feitiço com ele. Willem não se importava. Se ele pudesse apenas forçar as restantes linhas juntas e preservar uma quantidade mínima de funcionamento, isso seria o suficiente. Com um toque do cristal do núcleo, ele retirou a espada do modo de manutenção. Os 35 talismãs originais tentaram voltar para suas posições usuais, resultando em uma forma desajeitada de bastão.

Então, ele segurou a espada, aquela amálgama desajeitada de uma espada com o poder de proteger a mente e um talismã com o poder de conectar as mentes e empurrou-o diretamente para o coração da estátua de cristal.

Ah.

A música parou.

Willem sorriu suavemente.

[Desculpe], ele sussurrou suavemente. [Não consegui cumprir minha promessa].

Uma grande fissura apareceu no cristal e logo se espalhou por todo o pilar. Então, com o som de inúmeros sinos, o Cantor entrou em colapso. Pouco antes de se desintegrar completamente e desaparecer para sempre, a boca da menina da estátua de cristal enrolou em um sorriso fraco, o sorriso de um santo perdoando um pecador, o sorriso de uma filha sendo mimada por seu pai.

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A terra tremeu.

O teto, as paredes, o chão, tudo começou a entrar em colapso de uma só vez.

Willem, que já não tinha força suficiente para se levantar, caiu impotente junto com os entulhos nas profundezas abaixo. Uma sensação flutuante envolveu todo o seu corpo. Sua sensação de tempo ficou turva.

Uma voz cantando alto parecia reverberar diretamente em sua cabeça.

Seu campo de visão ficou tingido de cinza pálido.

O que!?

As mudanças súbitas o surpreenderam, mas ele logo entendeu o significado delas. Ele agora ouvia a mesma música que os moradores de Gomag ouviram. Ele viu o mesmo cenário que eles viram em seus sonhos.

O impulso de se transformar em uma Besta que se encontrava na raiz da raça humana. Uma grande quantidade de arrependimento como uma tempestade furiosa. Um poder para cortar o querido passado perdido da realidade e criar um mundo de sonhos. O delírio firme que se esconderia nesse mundo resolveria um dia esses arrependimentos. Esse pacote de emoções era a verdadeira natureza do Cantor. E agora, tendo perdido Almaria como seu recipiente, tinha entrado na pessoa mais próxima, o último humano que permaneceu na vasta terra.

[Ah... Entendo...]. Claro. Os seres humanos podem se transformar em Bestas. [Eu acho que não sou uma exceção...].

Não era nada para se surpreender. Na verdade, foi uma conclusão óbvia.

Eu me pergunto que tipo de Besta eu vou me transformar.

Quais dos 17 símbolos da destruição eu me tornarei?

Talvez não tenha importado no que ele se transformou. Nephren estava ali, Carillon em mãos. Mesmo se Willem se transformasse em um monstro que poderia desnudar suas presas contra os moradores de Règles Ailés, Nephren o mataria imediatamente. Ele poderia aceitar seu fim com tranquilidade.

[Willem!!].

Ele sentiu algo quente o agarrando. Abrindo os olhos e tirando a camada de cinzas, viu Nephren abraçada no seu corpo encharcada de sangue.

[... Ren!?].

Uma substância sinistra brotou do cadáver do Cantor e no corpo de Willem, passando por suas muitas feridas abertas. E agora, também começou a fluir para o corpo ferido de Nephren.

Willem não podia mais formar palavras coerentes, mas Nephren parecia entender sua pergunta.

Ela abriu levemente seus olhos fechados e olhou diretamente para o rosto dele. [Almaria me pediu!] Ela gritou em resposta. [Ela disse, conhecendo o pai, ele provavelmente vai sair e ir para algum lugar novamente em breve. Quando chegar esse momento, não tenho escolha senão confiar a você!].

A música ecoando na cabeça de Willem ficou mais suave. Mas isso só significava que estava crescendo mais forte dentro de Nephren.

[Ela disse, só você poderá cuidar do nosso deplorável e inútil pai!]*.

Do que você está falando? Desde quando vocês duas se tornaram tão próximas?

[É por isso que... Por isso...].

A música reverberou alto em ambas as mentes.

Nephren fechou os olhos com força novamente.

Ah, maldição. Por que minhas filhas são tão gentis e fortes...

Ithea. Tiat. Rhantolk. Nopht. Todos os rostos das fadas surgiram em sua mente, uma a uma. Collon. Pannibal. Lakhesh... Elas vão crescer em breve...

Sua boca ligeiramente torcida para cima na nostalgia crescente.

Pode ser um pouco problemático... Mas estou contando com vocês para lidar com a gente.

Apertando aquela sensação de calor no peito com a última força restante, Willem fechou os olhos com calma.

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